PARTE I - NOÇÕES GERAIS
Capítulo I - Introdução
1. Objecto do Direito do Trabalho
O Direito do Trabalho não é o direito de todo o trabalho, não toma como objecto de regulação todas as modalidades de exercício de uma actividade humana produtiva ou socialmente útil.
Como ramo de Direito o seu domínio é o das relações de trabalho dependente ou assalariado, da qual se retira a ideia de que estamos perante uma relação juridicamente livre e voluntária, característica que é traduzida no plano normativo pela figura do contrato de trabalho.
Estar-se-á, pois, diante de formas de trabalho livre, voluntariamente prestado: afastam-se assim as actividades forçadas ou compelidas, proibição e erradicação do trabalho forçado que é consagrada no art.º 84/3 da Constituição da República de Moçambique (1), mas também em leis internacionais, como a a Convenção n.º 105 da OIT sobre a abolição do trabalho forçado (2), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 4º), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 8º), o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (art.º 6.º), e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (art.º 5.º).
Mas a “liberdade jurídica” que está em causa na definição do objecto deste ramo de Direito é uma liberdade formal: consiste na possibilidade abstracta de aceitar ou recusar um compromisso de trabalho, o direito à “livre escolha da profissão” consagrado no artigo 84/2 da CRM (3), e de concretizar tal escolha mediante a realização de um contrato específico que é o contrato de trabalho.
Na realidade, o Direito do Trabalho desenvolve-se ao redor da prestação de trabalho subordinado, livre, e remunerado no quadro de uma relação contratual jurídico-privada – art.º 1 da Lei do Trabalho, subordinado precisamente à epígrafe “Objecto” (4).
Antes do mais, trata-se de trabalho subordinado livre porque se alude a uma situação em que a colocação de uma pessoa “sob a autoridade e direcção” de outra (art.º 18 da LT) (5), não deriva de uma imposição alheia, antes se baseia num acto de vontade daquele que assim se subordina. O que caracteriza o Direito do Trabalho é, verdadeiramente, o facto de o trabalho livre poder ser exercido na dependência de outrem, isto é, o de o trabalhador poder livremente dispor da sua força de trabalho a favor do destinatário do trabalho (empregador) a quem compete, dentro de certos limites, determinar o “quando”, o “onde” e o “como” da actividade a realizar pelo trabalhador.
Por outro, o ordenamento jurídico-laboral ocupa-se da prestação de trabalho remunerado: estão fora do seu objecto as situações em que alguém realiza uma actividade, em proveito de outrem, a título gratuito ou sem directa contrapartida económica.
Finalmente, ao Direito do Trabalho importam, em princípio, somente as relações jurídico-privadas de trabalho, isto é, tituladas por contrato de trabalho. Assim, embora revistam as características do trabalho subordinado ou dependente, do âmbito do Direito do Trabalho estão excluídas as relações de emprego público que se estabelecem entre o Estado e os funcionários públicos (art.º 2/3 da LT) (6), as quais são objecto do direito administrativo (direito da função pública).
Importa acentuar, a este respeito, que o n.º 2 do art.º 3 da LT habilita, no entanto, as pessoas colectivas públicas a celebrar contratos de trabalho, o que significa que poderão coexistir no âmbito da Administração Pública dois regimes de emprego diferentes:
- o regime jurídico de emprego público definido no EGFAE - Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado, a que estão submetidos os funcionários e agentes em sentido próprio da administração pública (administração estadual e autárquica);
- o regime de emprego privado dos trabalhadores em regime de contrato individual de trabalho das pessoas colectivas públicas pertencentes à administração indirecta do Estado (institutos públicos) ou empresarial do Estado (empresas públicas), a quem se aplicam, genericamente, todas as disposições da Lei do Trabalho.
Por fim, neste âmbito do objecto do Direito do Trabalho, convém abordar o que se tem designado como a “tendência expansiva do Direito do Trabalho”, que se manifesta em particular, quanto a modalidades de prestação de trabalho tradicionalmente excluídas do objecto do Direito do Trabalho. Genericamente denominadas por trabalho autónomo ou autodeterminado, caracterizam-se pela actividade do prestador do trabalho ser programada e conduzida pelo próprio e tendo em vista a obtenção de um resultado devido a outrem. As relações de trabalho autónomo, pela simples razão de que nelas não existe subordinação jurídica do fornecedor de trabalho relativamente ao beneficiário final do respectivo resultado, estão fora do objecto do Direito do Trabalho.
Em suma, o Direito do Trabalho é o ramo de Direito que se desenrola em torno da prestação de trabalho subordinado, livre e remunerado no quadro de uma relação contratual jurídico-privada, a que corresponde um título jurídico próprio: o contrato de trabalho, mediante o qual “uma pessoa se obriga a prestar a sua actividade a outra pessoa, empregador, sob a autoridade e direcção desta, mediante remuneração” (art.º 18 da LT).
Notas:
(1) Art.º 84/3 da CRM “O trabalho compulsivo é proibido, exceptuando-se o trabalho realizado no quadro da legislação penal”.
(2) A Convenção n.º 105 da OIT sobre a abolição do trabalho forçado, tinha sido já ratificada por Portugal, sem reserva de aplicação às então colónias portuguesas, pelo Decreto n.º 42.381, de 13 de Julho de 1959.
(3) Art.º 84/2 da CRM “Cada cidadão tem direito à livre escolha da profissão.”
(4) Art.º 1 da LT “A presente lei define os princípios gerais e estabelece o regime jurídico aplicável às relações individuais e colectivas de trabalho subordinado, prestado por conta de outrem e mediante remuneração”.
(5) Lei do Trabalho aprovada pela Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto, e doravante designada por LT. Por isso, sempre que uma disposição legal é citada sem indicação da fonte, deve entender-se que ela se reporta à presente Lei do Trabalho, salvo se outra conclusão se retirar do contexto.
(6) Com efeito, o art.º 2 da LT ao definir o respectivo âmbito de aplicação, determina que esta não se aplica aos funcionários e agentes do Estado, os quais serão objecto de lei especial, nos termos do n.º 2 do art.º 251 da Constituição. O Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE) consta da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto, e do Decreto n.º 5/2018, de 26 de Fevereiro - Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (REGFAE), que são igualmente aplicáveis aos funcionários e agentes da administração autárquica.
A este propósito, conforme salienta Paulo Daniel Comoane (“A Aplicação da Lei do Trabalho nas Relações de Emprego Público”, in Colecção de Estudos de Direito Africano, Almedina, 2007), «Face à conclusão de que a relação de trabalho na função pública é uma forma especial – espécie – de relação individual de trabalho, parece estranho à primeira vista que o legislador, diferentemente do que fez com outros regimes específicos, tivesse consagrado que a função pública se rege por regime específico.
É que, em relação às demais relações individuais de trabalho que requeiram regimes especiais, o legislador limitou-se apenas a dizer que a LT (Lei n.º 8/98) é aplicável em tudo o que a sua natureza não se opuser; mas em relação à função pública, ao definir o âmbito de aplicação da LT, remete, expressa e claramente, as relações de trabalho dos funcionários do Estado para um regime específico.
Há um primeiro sentido e relevância que se podem retirar desta opção do legislador. Como é evidente, o que o legislador pretende dizer é que, nas demais relações de trabalho, enunciadas no artigo 3 da LT, o regime desta última (LT) tem aplicação directa. Ou seja, a LT regula aquelas relações de forma directa e subsidiária, desde que naqueles regimes especiais determinada matéria não esteja especialmente tratada.
Porém, o mesmo regime de aplicação directa e subsidiária da LT não poderá ser extensivo à função pública na medida em que, para o legislador, a disciplina jurídica desta espécie de emprego público consta de “regime específico”. Em lugar de usar a terminologia “regime especial”, o legislador vinca o facto de o regime da função pública ser específico, o que, à luz da concepção liberal do Direito Administrativo, pode querer significar que este ramo do direito, a que pertence o regime da função pública, se constrói como um conjunto de excepções ao regime comum, justificadas pela diferente natureza da Administração, neste caso, entidade empregadora, e pelas suas específicas exigências.
É por isso que, dado o carácter acentuadamente especializado do regime da função pública, ele deixa de ser simplesmente um regime especial como qualquer outro, passando a ganhar o significado de um regime específico. Com efeito “aquilo a que se obrigam mediante vínculo estabelecido com a Administração e o conjunto de exercício de funções dos vários agentes vem a redundar na actividade da Administração. Esse exercício e esta actividade são conformados por particulares princípios que tais preceitos albergam”. Consequentemente, “a aplicação do Direito Civil ou do Direito do Trabalho, na medida em que se parametrize por essas limitações públicas, não será aplicação pura e simples desses ramos de Direito, mas de normas desses Direitos, tornadas próprias (específicas) da Administração”.
Portanto, o significado e relevância da remissão da função púbica para regime específico tem que ver com o facto de a relação de trabalho estabelecida entre a Administração e o Administrado (trabalhador), apesar de ser uma espécie do género da relação jurídica de trabalho subordinado, a LT não lhe ser directamente aplicável nos termos definidos no artigo 3 deste diploma legal».
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