32. A invalidade do contrato de trabalho
O contrato de trabalho é nulo quando viole normais laborais de natureza imperativa (art.º 51/1, da LT).
A invalidade é um conceito jurídico que traduz um juízo de desvalor de um acto jurídico (v.g., um acto jurídico bilateral ou negócio jurídico) face à ordem jurídica. Dito de outro modo, a invalidade traduz a qualidade do acto jurídico ao qual faltam elementos internos essenciais exigidos pelo tipo legal de acto em causa ou tais elementos internos, embora existentes no caso concreto, são irregulares devido à sua desconformidade legal.
Qual é a reacção da ordem jurídica violada, isto é, qual é sanção jurídica da invalidade?
Regra geral, a ordem jurídica prevê duas sanções distintas para a invalidade do negócio jurídico, a saber:
- a nulidade, e
- a anulabilidade (art.ºs 286.º e 287.º do CC).
A diferença entre a nulidade e a anulabilidade consiste, pois, em que enquanto a nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado e, também, a todo o tempo, pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, (art.º 286.º do CC); a anulabilidade só pode ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (e não por quaisquer outras) e apenas dentro do prazo de 1 ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento (art.º 287.º do CC), prazo esse que, no caso de erro ou dolo, começa a correr a partir do momento em que o declarante se apercebeu dele, ou, no caso da coacção, a partir do momento em que esta cessou. Por outro lado, a anulabilidade é sanável mediante confirmação, expressa ou tácita, da pessoa a quem pertencer o direito de anulação, mas só é eficaz desde que tenha cessado o vício que lhe serve de fundamento e, além disso, essa pessoa tenha conhecimento desse vício e do direito à anulação (art.º 288.º do CC).
(i) Invalidade total e invalidade parcial
Nesta conformidade, a LT prevê um regime especial que distingue entre as situações de “invalidade total” e as de “invalidade parcial” do contrato de trabalho. (107)
Nos termos do n.º 2 do art.º 51, a nulidade e a anulabilidade do contrato de trabalho podem não determinar a invalidade de todo o contrato mas apenas de parte dele, situações em que o contrato permanece válido na parte não viciada (“invalidade parcial”), o que traduz uma manifestação do princípio geral do art.º 292.º do CC, sobre a “redução dos negócios jurídicos”, aplicável ao contrato de trabalho, nos termos desse mesmo art.º 51/2.
Note-se, no entanto, que a redução não terá lugar nos casos em que, comprovadamente, nenhum dos contraentes, ou pelo menos um deles, teria concluído o contrato sem essa parte viciada. Feita esta prova, o contrato de trabalho “cai” na sua totalidade, nada dele se aproveitando (“invalidade total”) - art.º 51/2, in fine.
O mesmo regime da nulidade e anulabilidade se aplica quanto aos efeitos das incapacidades, prevista no n.º 3, do art.º 22, da LT, ao preceituar que quando seja celebrado um contrato de trabalho por quem não disponha da correspondente capacidade jurídica, o contrato é nulo. Se, em vez disso, faltar a capacidade para o exercício de direitos, a sanção é, em regra, a anulabilidade do contrato.
No primeiro caso, estamos diante de uma incapacidade de gozo que se reporta à titularidade de direitos e vinculações de que uma pessoa não pode gozar e que não admite suprimento (a consequência é a “nulidade” do contrato); no segundo, estamos perante uma incapacidade de exercício em que está em causa a impossibilidade de certa pessoa, exercer pessoalmente um direito de que é titular, sendo, contudo, viável que outra pessoa venha a exercer esse mesmo direito em conjunto com o incapaz ou em substituição deste, sendo, por isso mesmo, suprível (a consequência é a “anulabilidade” do contrato).
Ainda quanto ao regime da invalidade do contrato de trabalho, o n.º 3 do art.º 51 admite a hipótese da sua conversão legal: o legislador fala em “suprimento”, mas do que se trata aqui é de uma conversão (ou, para alguns autores, de “substituição automática”), em que as cláusulas contratuais nulas, isto é, que contendam com normas legais imperativas, devem ser substituídas por estas, assim se salvando todo o contrato. Dito de outro modo, o negócio jurídico parcialmente nulo pode ser convertido num negócio de tipo diferente ou de conteúdo diferente, desde que contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, e desde que objectivamente se possa supor que as partes, se tivessem previsto a invalidade, teriam querido o negócio substituto. Imagine-se, por ex., a hipótese de um contrato de trabalho parcialmente nulo, mas onde estejam presentes os elementos essenciais de um contrato de prestação de serviços e se possa concluir que as partes teriam querido este tipo contratual se tivessem podido prever a invalidade do contrato de trabalho celebrado.
(ii) Invocação da invalidade
A peculiar natureza do contrato de trabalho introduz algumas especificidades ao regime de invalidade previsto no Código Civil. Com efeito, a LT adopta, perante o tema, posições semelhantes às que, na generalidade dos sistemas jurídico-laborais, têm inspirado a singular relevância da execução do contrato do trabalho. (108)
Assim, no n.º 1 do art.º 52 estabelece-se uma primeira especificidade relativamente à lei civil: o prazo para a invocação da invalidade do contrato de trabalho é de “6 meses contados a partir da data da sua celebração”, sendo, no entanto, invocável a todo o tempo nos casos em que o contrato de trabalho tiver objecto ou fim ilícito.
O vocábulo “ilícito”, utilizado no n.º 1 deste art.º 52 é equívoco e poderá, por isso, dar azo a interpretações controvertidas. Em direito civil, acto ilícito é aquele que contraria o disposto na lei. Ou seja, em termos práticos, o acto ilícito traduz-se no incumprimento de um dever imposto pela lei ou numa prática que a lei proíbe. Nesta acepção, um contrato inválido, seja essa invalidade cominável com a anulabilidade ou com a nulidade, é sempre um contrato ilícito.
Portanto, invalidade e ilicitude são duas faces de uma mesma moeda. Logo, um contrato ilícito é sempre inválido e um contrato inválido é sempre ilícito.
Ora, no preceito em causa, o legislador prevê um prazo de seis (6) meses para atacar a invalidade, mas admite que tal ataque possa ser feito a todo o tempo (isto é, sem dependência de qualquer prazo) quando o contrato seja ilícito. Estamos perante uma, se não real, pelo menos aparente contradição. A nosso ver, a única interpretação que permitirá superar tal contradição será aquela em que se interprete o vocábulo “ilícito” em sentido muito restrito, isto é, no sentido em que a ilicitude do contrato derive de uma proibição legal expressa ou de um fim contrário à lei.
Dito de outro modo, só nos casos em que a invalidade do contrato seja cominável com a nulidade é que tal invalidade poderá ser arguida a todo o tempo. Nos demais casos, isto é, quando a invalidade for geradora de mera anulabilidade, então o prazo para arguir essa invalidade será apenas de seis meses, sob pena de convalidação ou sanação do contrato. Esta parece ser, a nosso ver, a ratio legis do preceito em apreço.
Quanto aos efeitos da invalidade (trate-se de negócios jurídicos nulos ou simplesmente anuláveis) as consequências na lei civil são as mesmas: a invalidade não só impede que o negócio jurídico produza efeitos para o futuro, como destrói os efeitos que ele já tivesse produzido no passado, apesar da falta ou do vício verificado (art.º 289.º do CC).
Não é assim, no contrato de trabalho, nos termos da regra especial do n.º 2 do art.º 52, mediante a qual a invalidade não opera retroactivamente. Com efeito, se o contrato tiver sido cumprido, devem ser respeitados e assegurados não só os efeitos que efectivamente já produziu, bem como os que deveria ter produzido durante o período em que houve execução do mesmo. Deste modo, relativamente ao período de execução do contrato de trabalho, o trabalhador não tem que restituir ao empregador o que dele tenha recebido (v.g., a retribuição pelo trabalho prestado, retribuição correspondente às férias entretanto gozadas...), assim como o empregador não tem obviamente que restituir (o que seria de resto impossível) ou compensar o trabalhador pelo trabalho que dele tenha recebido.
Em síntese: a invalidade do contrato de trabalho não tem eficácia retroactiva (ex tunc), mas releva apenas para o futuro (ex nunc), mantendo-se, por isso, os efeitos decorrentes da respectiva execução, i.e., a invalidade não produz quaisquer efeitos relativamente a todo o período em que o contrato de trabalho esteve em execução, tudo se passando como o contrato fosse válido. (109)
Compreende-se, aliás, que assim seja, uma vez que o princípio de que a invalidade do contrato de trabalho apenas opera para o futuro é a que melhor protege o trabalhador, na medida em que assegura que o tempo de execução do contrato possa contar para efeitos da protecção social (por ex., para a contagem do tempo de trabalho para a reforma da Segurança Social, de acidentes de trabalho e doenças profissionais).
(iii) Convalidação do contrato de trabalho
O art.º 53 da LT consagra expressamente a “convalidação do contrato inválido” no domínio da relação laboral, prevendo-se no n.º 1, a possibilidade de, durante a execução do contrato de trabalho, vir a desaparecer a causa da invalidade, caso em que o contrato se considera convalidado desde o seu início (por ex., se um trabalhador celebra o seu contrato de trabalho sem carteira profissional, nos casos em que esta seja considerada como requisito obrigatório de celebração daquele, e a adquire posteriormente, o contrato considera-se convalidado desde o início da sua execução, retroactividade da convalidação ao momento da celebração do contrato que terá importantes consequências no que respeita à antiguidade do trabalhador).
Porém, a norma em causa não se aplica em toda a linha aos contratos que tenham por objecto ou actividades contrárias à lei, à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes (ou seja, não tem aplicação aos contratos feridos de nulidade), em relação aos quais a convalidação só produz efeitos se e a partir do momento em que cessar a causa da invalidade (n.º 2).
A convalidação do contrato de trabalho pressupõe, assim, a verificação dos seguintes requisitos:
- a cessação da causa de invalidade (vício que afecta o contrato);
- que a cessação da causa da invalidade ocorra durante a execução do contrato.
Notas:
(107) Em geral, sobre a invalidade do contrato de trabalho, Monteiro Fernandes “ Direito do Trabalho”, pp. 336-338.
(108) Mónica Waty, “Direito do Trabalho” pp. 45 e ss: “A LT com efeito, nos art.ºs. 51º e 52º, adopta perante o tema posições semelhantes às que, na generalidade dos sistemas, tem inspirado a singular relevância da execução do contrato - isto é, das relações factuais de trabalho ou da incorporação a que se faz referência”.
(109) Acórdão do Tribunal de Supremo de 24 de Março de 2010 (Processo n.º 25/94) – BR, III Série, n.º 54, de 8.07.2015: «O contrato de trabalho nulo ou anulado produz todos os efeitos de um contrato válido, desde que chegue a ser executado e durante o período da sua execução, conforme o nº 2, do artigo 15º, da Lei nº 8/85, de 14 de Dezembro».
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