10. Fontes nacionais ou internas
10.1. Constituição
Entre as fontes nacionais avulta a Constituição da República de Moçambique (CRM) que inclui diversos princípios aplicáveis às relações de trabalho e à protecção dos trabalhadores, constituindo, assim, uma fonte do Direito do Trabalho, a fonte suprema deste ramo do direito.
“A constitucionalização do Direito de Trabalho foi, precisamente, uma das manifestações da intervenção constitucional no âmbito privado. Com o advento do Estado Social de Direito o trabalho passou a ser também um problema constitucional (…). É com a Constituição alemã de Weimar, de 1919, que passam, pela primeira vez, a ter assento constitucional diversos princípios laborais. A partir daí, a maioria dos textos constitucionais procedem a um enquadramento próprio das relações de trabalho, caracterizado, designadamente, pela admissão de um certo número de direitos colectivos dos trabalhadores (liberdade sindical, negociação colectiva e greve), bem como de direitos a prestações do Estado, que traduzem um compromisso por parte deste de estabelecer mecanismos de protecção social. A uma segunda fase da constitucionalização do Direito de Trabalho corresponde, como é sabido, a garantia dos direitos de cidadania no âmbito do contrato de trabalho”. (30)
É nesta mesma linha que a Constituição de Moçambique (CRM 2004) consagra como normas directa e imediatamente vinculadoras na ordem jurídica laboral (art.ºs 2/4, e 56) certos direitos fundamentais específicos dos trabalhadores, designadamente dos seus direitos colectivos:
- “direito ao trabalho” que garante o direito à livre escolha da profissão e proíbe o trabalho compulsivo (art.º 84);
- “direito à retribuição e segurança no emprego” que garante o direito à justa remuneração, descanso, férias e à reforma e proíbe os despedimentos sem justa causa (art.º 85);
- “liberdade de associação profissional e sindical” que assegura aos trabalhadores o direito de se organizarem em associações profissionais ou em sindicatos (art.º 86);
- “direito de greve e à proibição de lock-out” (art.º 87),
mas também de direitos que não sendo especificamente laborais, mas direitos de cidadania dos trabalhadores, devem na mesma ser considerados como componentes estruturais fundamentais do contrato de trabalho, como os da igualdade e não discriminação (art.º 35), direito à honra, ao bom nome, à reputação, à defesa da sua imagem pública e à reserva da sua vida privada (art.º 37.º), liberdades de expressão e informação, reunião e manifestação (art.ºs 48 e 51), liberdade ideológica (art.º 53), liberdade de consciência, de religião e de culto (art.º 54), etc. (31)
10.2. Leis do trabalho
A primeira fonte interna que se nos depara é a lei «disposição genérica emanada de órgão estadual competente». (32)
O seu lugar, que lhe advém do sentido formal geral da nossa ordem jurídica, devidamente sustentado na Constituição, é ainda expressamente reconhecido pelo art.º 1.º do Código Civil e no art.º 13 da LT.
A lei e o decreto-lei («actos normativos emanados da Assembleia da República e do Governo» – art.º 13/1 da LT) constituem as principais fontes de direito do trabalho de origem estadual; com ressalva para as matérias cuja regulação é da competência exclusiva do Parlamento Nacional (art.º 179/2 da CRM 2004) ou carece de autorização deste (art.ºs 179/3 e 180 da mesma CRM 2004), quer a lei em sentido formal (acto legislativo do Assembleia da República) quer o decreto-lei (acto legislativo do Governo) gozam de competência concorrente, ocupando por isso o mesmo nível hierárquico em termos de fontes de direito.
Para além daquelas situações, a supremacia das leis parlamentares sobre as leis do governo manifesta-se igualmente no facto de a Assembleia poder ratificar os diplomas legislativos do Governo, podendo suspender no todo ou em parte a vigência até à sua apreciação, e proceder mesmo, em caso de recusa de ratificação, à sua revogação (art.º 181 da CRM 2004).
Salvaguardados os limites a que está sujeita a restrição dos direitos dos trabalhadores consagrados na Constituição (reserva formal de lei), o legislador goza de uma extensa competência reguladora das condições de trabalho, abrangendo praticamente todos os aspectos da relação individual de trabalho e das relações colectivas de trabalho.
O exemplo mais relevante é a Lei do Trabalho (Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto) que, além de desenvolver os princípios e os direitos constitucionais relativos às relações laborais, fixa um amplo conjunto de condições de trabalho que se impõem aos parceiros sociais e às partes do contrato. Assim, no plano individual, o legislador regula, designadamente, a formação do contrato, o tempo de trabalho e o tempo de descanso, o trabalho extraordinário, o salário, o poder disciplinar, a suspensão do contrato, a cessação do contrato, a segurança e higiene no trabalho, etc.
A nível das relações colectivas, são objecto de regulamentação os aspectos relacionados com a liberdade de associação e a liberdade sindical, o direito de negociação colectiva, a conflitualidade laboral, a resolução dos conflitos de trabalho e a fiscalização e o controlo da aplicação das leis do trabalho.
10.3. Instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho
Constituem, igualmente, fontes internas de Direito do Trabalho os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (art.º 13/1 da LT) – esta é a designação que a lei atribui genericamente às diversas formas de regulamentação colectiva de trabalho.
Os IRCT´s constituem uma fonte de direito específica das relações laborais, regulada nos art.ºs 15 e 164 e ss. da LT: trata-se de uma fonte com aptidões especiais para o incremento do Direito do Trabalho, na medida em que podem fixar condições de trabalho que a lei não contempla, como estabelecer disciplina diferente da prevista pelo legislador, desde que seja em sentido mais favorável para o trabalhador, como se analisará mais adiante.
O art.º 15 distingue os IRCT´s em negociais (ligados à autonomia colectiva) e não negociais (que advêm da decisão de árbitro ou órgão arbitral).
Os IRCT´s negociais são:
(i) as convenções colectivas de trabalho;
(ii) os acordos de adesão;
(iii) as decisões de arbitragem voluntária.
Por seu turno, os IRCT´s não negociais reconduzem-se às decisões de arbitragem obrigatória.
A mais importante destas fontes é, sem dúvida, a «convenção colectiva» - que na sua tipologia tripartida, identificada em função da natureza das partes celebrantes, e prevista nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do art.º 15 da LT, de «acordo de empresa», «acordo colectivo» e «contrato colectivo» - constitui o instituto mais adequado à expressão da autonomia colectiva.
A «convenção colectiva de trabalho» pode ser definida como um acordo celebrado entre, por um lado, as entidades empregadoras (empregadores ou suas associações) e, por outro, as associações sindicais representativas dos trabalhadores, com o objectivo principal de fixar as condições de trabalho que irão vigorar para os trabalhadores e empregadores abrangidos, isto é, que se destinam a ser aplicadas aos sujeitos (empregadores e trabalhadores) compreendidos no seu âmbito de aplicação.
10.4. Os usos da profissão e das empresas
O n.º 2 do art.º 13 da LT considera ainda como fontes laborais os usos laborais de cada profissão, sector de actividade ou empresa, que não forem contrários à lei e ao princípio da boa-fé, excepto se os sujeitos da relação individual ou colectiva de trabalho convencionarem a sua inaplicabilidade.
Embora alguns juslaboralistas não os considerem verdadeiras fontes laborais que as denominam de “fontes mediatas”, por contraposição às “fontes imediatas” de Direito do Trabalho (33), o certo é que o n.º 2 daquele preceito os manda atender como fontes desde que não contrariem as normas aplicáveis ao contrato de trabalho e não sejam contrários aos princípios da boa-fé, a não ser que as partes, por escrito, as excluam.
Os usos laborais correspondem, pois, a práticas sociais usuais e constantes observadas no exercício de certas profissões ou em certas empresas, sem que essa observância seja acompanhada da convicção da sua obrigatoriedade e coercibilidade, e em cuja noção está ínsita ou implícita a ideia de uma reiteração ou repetição dum comportamento ao longo do tempo. (34)
Note-se que quando a lei fala em «usos laborais de cada profissão, sectores de actividade ou empresa» se refere a usos de certos sectores, identificáveis por profissões, por actividade económica (empresas) ou a práticas de uma empresa, em concreto. Por exemplo, se uma determinada empresa concede o gozo da terça-feira de Carnaval (que é não é feriado) a todos os seus trabalhadores, sem perda de remuneração, desde a sua fundação, tal configura uma prática constante e uniforme, integrante dum “uso da empresa” que justifica a tutela da confiança dos seus trabalhadores, não podendo aquela retirar unilateralmente o seu gozo.
10.5. Regulamento interno
O art.º 14 da LT permite que os sujeitos da relação de trabalho possam estabelecer códigos de boa conduta e regulamentos internos (n.º 1), embora não os considere como fontes do Direito do Trabalho (n.º 2).
Abstraindo dos “códigos de boa conduta” que não são mais do que códigos de ética (35), interessa-nos abordar a questão do regulamento interno, uma vez que o art.º 61 da LT ao reportar-se ao poder regulamentar do empregador prevê expressamente que este possa proceder à emissão de regulamentos internos contendo normas sobre a “organização e disciplina do trabalho, regimes de apoio social aos trabalhadores, utilização de instalações e equipamentos da empresa, bem como as referentes a actividades culturais, desportivas e recreativas” (n.º 1).
O regulamento interno é, portanto, uma emanação do poder de direcção do empregador, sendo constituído pelo conjunto de regras relativas à organização e disciplina da actividade laboral na empresa (dimensão normativa), podendo além disso conter normas relativas a condições de trabalho, cuja eficácia está dependente do consentimento dos trabalhadores (dimensão contratual). Relativamente a este último aspecto, o regulamento interno é o meio através do qual o empregador pode definir o modelo de contrato de trabalho que pretende aplicar na empresa, embora esse objectivo esteja dependente da aceitação dos trabalhadores.
Na verdade, além da função de organizar e disciplinar a execução do trabalho, o regulamento interno pode desempenhar uma outra função: a de editar normas que manifestem a vontade contratual do empregador no que respeita a novas condições de trabalho (cfr. n.º 3 do art.º 61 da LT). Ao estabelecer novas condições de trabalho, o regulamento interno que as contém funciona como uma proposta-tipo de adesão apresentada pelo empregador relativamente aos trabalhadores admitidos em data anterior à publicação do mesmo, os quais tanto podem rejeitá-la como aderir-lhe de forma expressa ou tácita (cfr. art.º 37 da LT sobre o “contrato de trabalho de adesão”).
Por tudo isto, o entendimento do n.º 2 do art.º 14 da LT, ao admitir a admissibilidade de adopção pelo empregador de emissão de regulamentos internos (com dimensão normativa sobre a organização e disciplina do trabalho ou contratual nas restantes situações) e ao negar a sua consideração como fontes de Direito do Trabalho parece-nos contraditório, se tomarmos em linha de conta que deles advêm um conjunto de prescrições que têm de ser observadas pelos trabalhadores. Somos levados, por isso, a concluir que no sistema jurídico moçambicano, os regulamentos internos não constituindo, formalmente, fontes juslaborais, são-no ainda assim materialmente.
Notas:
(30) José João Abrantes “Estudos Sobre o Código do Trabalho”, Coimbra Editora, 2004, p. 18
(31) Conforme salienta José João Abrantes “Protecção da Personalidade do Trabalhador e a Regulamentação do Código do Trabalho”, Stvdia Ivridica, Coimbra Editora, 2005, pp. 23-24 que embora referente ao direito do trabalho português, é, neste aspecto, inteiramente aplicável ao regime jurídico-laboral moçambicano: «É hoje, de facto indiscutível a ideia de que a celebração do contrato de trabalho não implica a privação dos direitos que a Constituição reconhece a todas as pessoas e cidadão, reconhecendo a generalidade das ordens jurídicas europeias a plena eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana no âmbito da relação laboral, apenas tendo como limites “interesses legítimos” do empregador ou de terceiros, naquilo que aponta para um critério de concordância prática.
Precisamente porque a liberdade do trabalhador é co-natural à conflitualidade inerente ao contrato de trabalho, constitucionalmente protegida, ela não pode ser inteiramente sacrificada aos interesses do empregador – não tendo, pois, razão de ser a liberdade contratual em termos de permitir a renúncia do trabalhador aos seus direitos e/ou imposição de limitações a essa liberdade para além do estritamente necessário, impondo-se antes recorrer às regras próprias dos conflitos de direitos, sem subalternização desses direitos à liberdade de empresa.
Esses direitos têm de ser acautelados e o seu exercício só pode ser restringido se, e na medida em que, colidir com interesses relevantes ligados ao funcionamento da empresa e ao correcto desenvolvimento das prestações contratuais.
A regra deverá ser, conforme temos sustentado, a de que, em princípio, o trabalhador é livre para tudo aquilo que não diga respeito à execução do seu contrato. É aquilo que pode ser designado por presunção da liberdade (“Freiheits-vermutung”), a qual significa que, na empresa, as limitações à liberdade do trabalhador deverão revestir natureza absolutamente excepcional, não se justiçando senão em obediência a princípios de proporcionalidade (na tripla dimensão de necessidade, adequação e proibição de excesso) – ou seja, deverão “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos” – e respeito pelo conteúdo essencial mínimo do direito atingido (cfr. n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da CRP [n.ºs 2, 3 e 4 do art.º 56 da CRM 2004] e art.º 335.º do Código Civil)».
Para maiores desenvolvimentos sobre a problemática das relações entre o contrato de trabalho e direitos fundamentais, vd. ainda José João Abrantes “Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais”, Coimbra Editora (2005).
(32) A Lei em sentido material é toda disposição provinda de uma autoridade competente, em que embora varie o órgão de proveniência a formalidade adoptada, permanece idêntica a matéria, i.e., o conteúdo é sempre o mesmo, uma regra jurídica geral e abstracta emanada do Estado em sentido amplo, abrangendo qualquer pessoa colectiva de direito público. Assim sendo, em Moçambique, a lei em sentido material abrange quer a Lei propriamente dita da Assembleia da República, quer o Decreto-Lei do Conselho de Ministros, o Decreto Presidencial, o Decreto do Conselho de Ministros e o Diploma Ministerial.
(33) Fontes “imediatas ou directas” do Direito são aquelas que criam normas jurídicas, enquanto as “fontes mediatas ou indirectas” são aquelas que não criam normas jurídicas, mas contribuem para a sua formação.
(34) Neste particular, importa sublinhar que Moçambique, no pós-independência, não reconheceu a importância do direito costumeiro na busca da valorização dos direitos fundamentais do cidadão no Estado de Direito. A África é o continente do pluralismo jurídico, nele coexistindo diferentes normas consuetudinárias com o direito estadual, não sendo este último, por vezes, o mais importante nas relações entre os cidadãos. De um modo geral, o cidadão comum que corresponde à maior parte da população recorre aos mecanismos tradicionais (tribunais comunitários, autoridades tradicionais, régulos, líderes religiosos, etc.) para a resolução de litígios. Isto deve-se, por um lado, à fragmentação por várias etnias e diversidade linguística e, por outro, à distanciação cultural do sistema judicial imposto no período colonial. Infelizmente, a despeito do disposto no art.º 4.º da Constituição sobre o pluralismo jurídico, a verdade é que em Moçambique, excepto no que toca a alguns aspectos das relações familiares, as leis em geral e, no que aqui nos importa, também a Lei do Trabalho, reflectem a monopolização das normas jurídicas estaduais, não reconhecendo as fontes baseadas no direito costumeiro tradicional que, por vezes, invadem e se sobrepõem à própria esfera estadual, criando conflitos não previstos pelo ordenamento estatal (por ex., o direito laboral não dá resposta ao facto de como pode o trabalhador justificar as faltas por doença quando decide, em vez de recorrer aos serviços de saúde, consultar o “curandeiro tradicional”, o que sucede frequentemente, designadamente nos meios rurais).
(35) Na falta de definição legal, podemos definir os “códigos de boa conduta”, também designados de “códigos de ética”, como os instrumentos onde constam as regras gerais aplicáveis nas relações entre uma empresa ou um sector ou sectores de actividade económica e os respectivos trabalhadores, mas também com os seus “clientes” ou “stakeholder´s”, consagrando princípios, mormente de ordem ética, que regulam as responsabilidades e a transparência nas relações entre as partes.
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