Capítulo III – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais
O enquadramento jurídico da responsabilidade por acidentes de trabalho e doenças profissionais embora assente na Lei do Trabalho (art.ºs 222 a 236), foi regulamentada pelo Decreto n.º 62/2013, de 4 de Dezembro, que aprovou o Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (RJATDP), e revogou o quadro anterior à Lei do Trabalho, constante do Diploma Legislativo n.º 1706, de 19 de Outubro de 1957.
O regime das doenças profissionais é muito próximo dos acidentes de trabalho, tanto assim que ambos são regulados por disposições comuns da LT (art.ºs 226 a 236), princípio que é acentuado no n.º 2 do art.º 1 do RATDP ao preceituar que «Às doenças profissionais aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas aos acidentes de trabalho».
66. Acidentes Trabalho
O regime de acidentes de trabalho assenta na responsabilidade objectiva da entidade empregadora, isto é, na ideia de que o empregador tem de suportar os danos decorrentes dos acidentes ao seu serviço, não sendo necessário demonstrar a existência de culpa por parte do empregador (responsabilidade pelo risco - art.ºs 483º, nº 2. e arts. 499º e ss. do CC). Esta responsabilização objectiva (“independente de culpa”) do empregador é, no entanto, afastada nos casos em que o acidente de trabalho ou a doença profissional se ficaram a dever a embriaguez, dependência de drogas ou intoxicação voluntária do trabalhador sinistrado (art.º 229/1 da LT e art.º 16/1 do RJATDP).
Por outro, esta responsabilidade tem obrigatoriamente de ser transferida para uma companhia de seguros (art.º 231 da LT e art.º 7 do RJATDP).
Se, contudo, existir culpa da entidade empregadora (por ex., por falta de adopção de medidas de segurança no local de trabalho) esta pode incorrer em responsabilidade subjectiva por facto ilícito e, inclusivamente, se verificados os respectivos pressupostos, em responsabilidade penal (por ex. em caso de morte do trabalhador por homicídio negligente).
66.1. Noção
O conceito de acidente de trabalho resulta, conjugadamente, do disposto no art.º 222 da LT e no art.º 9 do RJATDP, sendo definido pelo legislador, como:
- um sinistro, i.é., um evento que se manifesta normalmente de modo súbito e violento;
- ocorrido no local e tempo de trabalho, ou seja, o sinistro deverá ter ligação com a prestação de trabalho, ou seja, a necessidade da verificação de um nexo causal entre o trabalho e o acidente (188), conexão que é estabelecida através de dois elementos “local” e “tempo de trabalho”, tomados em sentido lato; e que,
- produza, directa ou indirectamente, uma lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho, isto é, lesivo da capacidade produtiva do trabalhador. Ou seja, o sinistro de produzir um dano típico.
Na definição legal, entende-se por acidente de trabalho aquele que se verifique no local e tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou a redução na capacidade de trabalho ou de ganho. Este conceito de base é, depois, alargado ou completado por um conjunto de noções legais relativas ao local de trabalho, aos acidentes in itinere e, ainda, por uma série de circunstâncias, que descaracterizam o sinistro como acidente de trabalho, nomeadamente as que se prendem com a culpa do próprio sinistrado e com as situações de força maior (art.º 223 da LT e art.º 11 do RJATDP).
Deste modo, em certos casos (previstos no art.º 222/2 da LT e no art.º 9/2 do RJATDP), pode ser qualificado como acidente de trabalho um sinistro que ocorra fora do local ou do tempo de trabalho.
Assim se concretiza a extensão do conceito legal de acidente de trabalho, previsto no n.º 1 do art.º 222 da LT e no art.º 9 do RJATDP.
Assim, consideram-se igualmente acidentes de trabalho:
- o acidente in itinere ou de percurso, ou seja, o que ocorra na ida ou regresso do local de trabalho utilizando meio de transporte fornecido pelo empregador, ou quando o acidente seja consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco do mesmo percurso;
- o ocorrido antes ou após o período normal de trabalho, desde que seja em actos directamente relacionados com a preparação ou o termo da prestação de trabalho;
- o que ocorra fora do local e tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pela entidade empregadora;
- o ocorrido na execução de serviços espontaneamente prestados pelo trabalhador de que possa resultar proveito económico para o empregador;
- o que ocorra no local onde deve ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse fim.
Ao contrário, nas situações previstas no art.º 223 da LT e no art.º 11 do RJATDP, o empregador não está obrigado à reparação (dever de reparação) do acidente de trabalho.
O sinistro de trabalho ocorre na mesma, ou seja, a lesão corporal ou funcional sofrida pelo trabalhador resulta do trabalho prestado por conta de outrem, no local e tempo de trabalho, mas existem factos que determinam a exclusão ou a redução da responsabilidade civil do empregador emergente de acidente de trabalho – aquilo a que o legislador denomina de “descaracterização do acidente de trabalho”.
Trata-se de situações em que o acidente se deve exclusivamente a conduta imputável ao trabalhador, por dolo ou negligência, ou a razões de força maior. Todavia, esses factos ou situações não devem constituir um risco normal da profissão, nem quando o trabalhador esteja a prestar serviços ordenados expressamente pelo empregador, em condições de perigo evidente. Assim, por ex., não é de excluir a responsabilidade de um empregador, dono de uma embarcação, cujos trabalhadores sejam vítimas de um sinistro no alto mar, fruto de uma tempestade, não obstante esta constituir uma força inevitável da natureza (força maior).
Assim, de acordo com os referidos preceitos, o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
- for intencionalmente (“dolosamente”) provocado pelo sinistrado (alínea a) do art.º 223 da LT e art.º 11/1, alínea a) do RJATDP), em que se incluem, por ex., situações de sabotagem económica, das quais resultem lesões para o próprio;
- resultar de negligência indesculpável do sinistrado, por acto ou omissão de ordens expressas, recebidas de pessoas a quem estiver profissionalmente subordinado (alínea b) do art.º 223 da LT, e art.º 11/1, alínea b) do RJATDP). Desta noção de “negligência indesculpável” resulta que ficam descaracterizados os acidentes que provierem exclusivamente de “negligência grosseira” do sinistrado, pelo que são indemnizáveis os acidentes resultantes de “negligência simples”, ou seja, da mera imprudência, imprevidência, imperícia, distracção ou esquecimento;
- resultar de actos da vítima que diminuam as condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou exigidas pela natureza particular do trabalho (alínea c) do art.º 223 da LT, e art.º 11/1 alínea c) do RJATDP). Esta causa de descaracterização depende da verificação de violação dolosa ou de negligência indesculpável do trabalhador, por acção ou omissão, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora (por ex. em regulamento interno, ordem de serviço), ou previstas na lei, cabendo à entidade empregadora o respectivo ónus de prova (art.º 342.º, n.º 1 do CC);
- for consequência de ofensas corporais voluntárias (por ex., situações de automutilação) excepto se estas tiverem relação imediata com outro acidente ou a vítima as tiver sofrido devido à natureza das funções que desempenhe (por ex., agressões a pessoal de segurança da empresa ou ao pessoal afecto ao departamento de recursos humanos, por ordenar a instauração de um processo disciplinar contra o trabalhador agressor); ou, ainda, se o dano resultar de ofensas corporais sofridas na sequência de um acidente anterior (alínea d) do art.º 223 da LT, e art.º 11/1, alínea d) do RJATDP);
- resultar da privação do uso da razão do sinistrado, permanente ou ocasional, excepto se a privação derivar da própria prestação de trabalho, ou se o empregador, conhecendo o estado de sinistrado consentir na prestação (alínea e) do art.º 223 da LT. e art.º 11/1, alínea e) do RJATDP). Destes preceitos, resulta que é também afastada a obrigação de reparar os danos decorrentes de acidente que resulte da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil - art.ºs 257.º e seguintes (incapacidade acidental), 152.º e seguintes (inabilitação) e 1348.º e seguintes (interdição) - salvo se tal privação derivar da própria prestação de trabalho ou se a entidade empregadora ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação. Seria, por ex., o caso de um sinistro que resultasse de inalação de gás, numa secção de enchimento de garrafas de gás, em que o trabalhador, atordoado e em fuga, fosse colhido por uma viatura, no local e tempo de trabalho;
- provier de caso de força maior, salvo se constituir risco normal da profissão ou se se produzir durante a execução de serviço expressamente ordenado pelo empregador, em condições de perigo manifesto (alínea f) do art.º 223 da LT, e art.º 11/1, alínea f) do RJATDP). De um modo geral, ocorre a descaracterização quando o acidente provier de motivo de força maior, conceito que se encontra vertido no n.º 2 do art.º 223 da LT. Trata-se de causa devida a forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção humana, desde que não constituam risco criado pelas condições de trabalho, nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente. Assim, na aplicação da lei, o intérprete deve abster-se de fazer o uso do conceito de “força maior” nos termos gerais, aplicando-se este conceito em sentido especial, como o consagrou o legislador laboral no n.º 2 do art.º 223 da LT.
Notas:
(188) Quanto à necessidade da verificação de um nexo causal entre o trabalho e o acidente, como elemento essencial caracterizador do conceito legal de acidente de trabalho, vide Acórdão do Tribunal Supremo de 13 de Março de 2008 - Apelação n.º 56/05-L (BR, III Série, n.º 5, de 4/02/2010).
Sem comentários:
Enviar um comentário