15 outubro, 2020

Hierarquia das fontes de direito do trabalho e o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador

14. Hierarquia das fontes de direito do trabalho e o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador 
Como se disse, o Direito do Trabalho surgiu e autonomizou-se do Direito Civil precisamente para corrigir a relação de desigualdade que é inerente à relação de trabalho, tratando-se, portanto, de um direito de protecção do trabalhador (como parte mais débil da relação de trabalho), mediante restrições à liberdade e autonomia contratuais em tudo aquilo que pudesse representar a desprotecção dos trabalhadores face à supremacia económica, social e jurídica dos empregadores. 
As normas laborais têm, desse modo, uma natureza vocacionada para proteger a parte mais fraca na relação laboral; essa tutela tem sido historicamente realizada através da fixação de condições mínimas, ou seja, através da adopção de normas que fixam garantias que as partes não podem reduzir. O facto de constituírem normas de protecção mínima significa, por outro lado, que podem ser alteradas desde que seja para fixar melhores condições para os trabalhadores. 
Neste contexto geral, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador (princípio do favor laboratoris) é uma regra específica do Direito do Trabalho que contribui de um modo particular para a resolução do problema da aplicação de normas de diferente nível hierárquico. 
Da consagração legal (art.º 17 da LT) infere-se que também o regime jurídico-laboral moçambicano faz intervir, no critério de determinação das normas aplicáveis segundo a hierarquia, a ideia de tratamento mais favorável ao trabalhador. Este preceito introduz, na verdade, uma limitação ao critério hierárquico: poderão prevalecer as “fontes inferiores” que estabeleçam tratamento mais favorável ao trabalhador do que as superiores, desde que não haja “oposição” por parte destas. 
Porém, o princípio do tratamento mais favorável não implica qualquer alteração na ordem hierárquica das fontes de direito. Isto é, mesmo quando a norma hierarquicamente inferior contém um regime mais favorável para o trabalhador, ela só prevalecerá sobre a norma de grau hierárquico superior se esta não se opuser, isto é, se não for uma norma imperativa. É claramente isto que diz o n.º 1 do art.º 16 da LT que mantém o princípio geral da hierarquia das normas contra um indefensável entendimento de que em Direito do Trabalho esse princípio cederia perante o princípio do favor laboratoris. (39) 
Importa salientar igualmente que o princípio do tratamento mais favorável não constitui uma regra de interpretação das leis do trabalho – questão que se resolve de acordo com as regras gerais de interpretação da lei (art.º 9.º do Código Civil) – mas apenas uma regra destinada a resolver o conflito de hierarquia entre a lei e o IRCT ou o contrato de trabalho. Contudo, para aplicação deste princípio, é necessário um maior rigor na utilização dos critérios gerais de interpretação das leis (artigo 9.º do CC) quando se trate de identificar se uma norma é imperativa absoluta ou relativa, critérios que são aplicáveis na interpretação de toda e qualquer norma juslaboral. 
O princípio de aplicação da norma mais favorável exige normalmente um afastamento ou proibição, em termos expressos e directos, da relevância da norma inferior que se traduza numa melhoria da protecção do trabalhador. Quando não o afirmem inequivocamente ou fora dos casos em que fixam limites máximos (de que é exemplo a norma da alínea a) do n.º 1 do art.º 47 da LT, que estabelece que o período probatório não pode exceder 90 dias) a identificação de normas imperativas absolutas deve ser feita com maior grau de exigência, no que toca à valoração do elemento literal de interpretação, por necessidade de uma maior certeza e oposição à relevância das normas inferiores mais favoráveis.
Questão última é a de saber qual o âmbito de aplicação do tratamento mais favorável, ou seja, se as normas provenientes de fontes diversas devem ser comparadas no seu conjunto ou se deve ser retirada de cada uma delas a parte que seja mais favorável ao trabalhador. 
Doutrinalmente, existem sobre esta questão duas teorias: a do cúmulo (acumulação) e a da conglobação ou conglobamento
  • a “teoria do cúmulo” sustenta que a comparação deverá ser feita norma a norma, isoladamente, de tal forma que o regime aplicável às situações laborais seja equivalente a um somatório (acumulação) de normas retiradas de diversas fontes e que, em comum, têm apenas o de serem mais favoráveis para os trabalhadores. Em suma: o intérprete vai buscar às normas aplicáveis, ainda que retirando preceitos de normas diferentes, tudo o que for mais favorável ao trabalhador; 
  • ao contrário, de acordo com a “teoria do conglobamento”, o princípio do tratamento mais favorável deverá ser aplicado colocando em confronto os dois estatutos normativos, prevalecendo o que se revele na globalidade mais favorável para os trabalhadores, ou seja, não haverá possibilidade de decomposição ou fraccionamento das normas em confronto, excluindo-se, assim, a possibilidade de aplicação simultânea de regimes diferentes. 
Certamente, por se reconhecer que nenhuma destas teorias permite uma construção dogmaticamente aceitável, não se retira do art.º 17 da LT, o âmbito de aplicação do princípio do favor laboratoris na legislação de trabalho moçambicana, que – como é defendido por alguns juslaboralistas – deve ser aplicado no sentido de que a comparação da favorabilidade dos regimes tem de ser efectuado por conjuntos homogéneos de normas e os textos devem ser interpretados de modo a que o eventual cúmulo favoreça soluções que respeitem os princípios da adequação e da proporcionalidade. 

Notas: 
(39) Sobre o princípio do tratamento mais favorável, Monteiro Fernandes “Direito do Trabalho”, pp. 122-126, Maria do Rosário Palma Ramalho “Direito do Trabalho, Parte I – Dogmática Geral”, pp. 252-255. 
Na doutrina moçambicana, Abdul Carimo Issá/Duarte Casimiro/Paulo Comoane, Lei de Trabalho Anotada, UTREL, Maputo, 2007, em comentário ao art.º 17, Paulo Daniel Comoane “A Aplicação da Lei do Trabalho nas Relações de Emprego Público”, pp. 55-56, Domingos Carlos Madeira Júnior “Supletividade das normas jurídico-laborais”, pág. 7

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