17 março, 2021

Tutela da remuneração

52. Tutela da remuneração 

As expressões mais significativas do nexo estabelecido entre a remuneração e as necessidades do trabalhador consistem num conjunto de normas legais que oferece uma especial tutela da integridade dos valores que compõem o salário do trabalhador. 
Efectivamente, na generalidade dos casos, a remuneração constitui o principal, senão exclusivo, meio de subsistência do trabalhador e da sua família. Por isso, mesmo, o legislador preocupou-se em instituir os mecanismos necessários para garantir que o trabalhador receba a remuneração a que tem direito. (134) 

52.1. Descontos na remuneração 
Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação fazendo-se pagar pelo crédito que possui sobre a outra parte. Este princípio geral do direito civil não é aplicável no direito do trabalho, em que salvo os casos expressamente previstos na lei, é proibido ao empregador compensar, através da remuneração, créditos que tenha sobre o trabalhador ou proceder a qualquer outro tipo de retenção. (135) 
Assim, o art.º 114/1 da LT estabelece o princípio da proibição dos descontos ou retenções na remuneração do trabalhador. São abertas, contudo, várias excepções a esta regra, em função das quais o empregador pode descontar a remuneração do trabalhador: 

(i) Descontos a que o trabalhador dê autorização por escrito
No direito do trabalho comparado, proíbe-se a compensação/desconto efectuados pelo empregador na remuneração do trabalhador na vigência do contrato de trabalho, mesmo com o acordo deste, por esse acordo equivaler à renúncia ao direito à remuneração, ou parte dela, direito que é indisponível enquanto perdurar o contrato de trabalho, sendo, por isso, nulo qualquer acordo celebrado nesse sentido entre ambos. A LT moçambicana é, nesta matéria, mais liberal, uma vez que permite, desde que haja acordo escrito do trabalhador, a possibilidade de o empregador proceder a descontos ou retenções na remuneração do trabalhador (art.º 114, n.ºs 1 e 3); 

(ii) Descontos a favor do Estado e da Segurança Social e de outras entidade
O empregador poderá ainda descontar na remuneração do trabalhador as importâncias que, por imperativo legal, tem de reter a favor do Estado, da Segurança Social ou de outras entidades, desde que ordenadas por lei, decisão judicial transitada em julgado ou por decisão arbitral (art.º 114/2); 

(iii) Descontos por efeito de multas resultantes da aplicação de sanções disciplinares 
A entidade empregadora pode proceder igualmente a descontos na remuneração do trabalhador que decorram da aplicação da sanção disciplinar de “multa até 20 dias de salário” (art.º 114/2, e alínea d) do art.º 63); 

(iv) Descontos acordados em IRCT 
Por último, o empregador pode também deduzir na remuneração do trabalhador, outros descontos que tenham sido acordados em sede de IRCT aplicável na empresa ou estabelecimento (art.º 114/3). 
 A lei estabelece, contudo, um tecto para o conjunto dos descontos permitidos que não poderão exceder um terço (1/3) da remuneração mensal auferida pelo trabalhador (art.º 114/4).

52.2. Garantia salarial 
Outra forma de proteger o salário consiste na preferência estabelecida relativamente ao pagamento dos créditos resultantes do contrato de trabalho sobre os credores da empresa ou estabelecimento, com excepção do Estado, em caso de declaração de falência ou de liquidação da empresa (art.º 120).
Assim, de entre as medidas tutelares da remuneração, o trabalhador beneficia de um “privilégio creditório” sobre as remunerações que lhe forem devidas em período anterior à declaração de falência ou liquidação judicial (art.º 120/1). 
A lei geral (art.º 733.º do CC) considera como privilégio creditório “a faculdade de que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”, distinguindo depois duas espécies de privilégios creditórios – os privilégios creditórios mobiliários e os privilégios creditórios imobiliários (art.º 735.º). Este preceito cria um privilégio mobiliário geral, que gradua antes de quaisquer outros, à excepção dos do Estado, os créditos remuneratórios emergentes do contrato de trabalho anteriores à declaração de falência ou liquidação judicial da empresa (art.º 120/2). 
No mesmo sentido, o Decreto-Lei n.º 1/2013, de 4 de Julho, que aprovou o Regime Jurídico da Insolvência e da Recuperação dos Empresários Comerciais, determina que, em caso de insolvência, os “créditos derivados da legislação de trabalho e os decorrentes de acidentes de trabalho” são graduados em primeiro lugar na classificação dos créditos na insolvência (art.º 77, alínea a)).

52.3. Irrenunciabilidade do direito à remuneração 
O art.º 121 da LT consagra o princípio da “irrenunciabilidade do direito à remuneração”, segundo o qual são consideradas nulas as cláusulas de contrato de trabalho em que o trabalhador renuncie (total ou parcialmente) à remuneração (n.º 1). Trata-se de um princípio há muito assente no Direito do Trabalho e que se insere igualmente no âmbito das medidas tutelares da remuneração. 
De igual modo, são também nulas as cláusulas do contrato individual de trabalho em que se estipule a «prestação gratuita do trabalho» (o contrato de trabalho é por natureza “oneroso” - art.º 18) ou que condicione o seu pagamento a qualquer facto incerto (art.º 121/1, in fine). 
Por seu turno, a remuneração auferida pelo trabalhador não pode ser inferior ao salário mínimo nacional definido pela lei (art.º 108/5) ou à remuneração fixada no IRCT; como é óbvio, não interferem com estas regras as situações em que a remuneração estipulada pode ser inferior à mínima legal ou convencional, como é o caso do trabalho a tempo parcial.

Notas: 
(134) No artigo 59 da LT, estão referidos os deveres do empregador, prescrevendo-se na alínea e) o dever de “pagar ao trabalhador uma remuneração justa em função da quantidade e qualidade do trabalho prestado”. 
A remuneração é um elemento essencial do contrato de trabalho (artigo 18 da LT), pelo que se o trabalhador deixar de receber o seu salário, o empregador deixa de cumprir o contrato estabelecido com o seu trabalhador. 
Desta forma, o vínculo laboral encontra-se imediatamente posto em causa perante a lei, pelo que a falta de pagamento da remuneração devida oferece ao trabalhador duas opções: 
  • Reclamar juros de mora, conforme salienta Mónica Waty (“Direito do Trabalho”, W&W Editora, 2008, p. 103) «O empregador que se constitui em mora, obriga-se ao pagamento do valor do salário em dívida acrescido dos juros de mora». 
  • Rescisão de contrato de trabalho por justa causa (art.º 128). 

(135) Apesar de o recurso à compensação se revelar um mecanismo prático, o empregador está obrigado a pagar, por inteiro, a remuneração a que o trabalhador tenha direito e em que apenas após ter sido efectuado esse pagamento é que o trabalhador poderá liquidar a sua dívida (total ou parcialmente) perante aquele. De uma forma geral, esta proibição legal de compensação tem em vista proteger a autonomia e a liberdade do trabalhador, constituindo o meio de limitar a eventual prática de o trabalhador recorrer a empréstimos perante o empregador e, assim, prevenir uma situação de maior dependência que daí poderia advir para o trabalhador. 
Acórdão do Tribunal Supremo de 13.06.2006 - Recurso de apelação n.º 13/05-L (www.saflii.or.mz):
Descontos na remuneração – Proibição de descontos na remuneração sem autorização expressa do trabalhador – Regime geral da compensação. 
“1. De acordo com o disposto no artigo 98 da Lei do Trabalho n.º 8/85, de 14 de Dezembro, aplicável à presente relação controvertida, é vedado às entidades empregadoras efectuar descontos compensatórios nos salários dos trabalhadores, sem o consentimento do trabalhador, salvo as excepções e nos limites da lei. 
2. Ao estabelecer o princípio do n.º 1 daquela disposição legal, com as excepções taxativamente previstas no n.º 2 do mesmo preceito, o legislador quis expressamente prevenir as situações e actuações unilaterais das entidades empregadoras que possam pôr em risco a garantia do recebimento integral do salário. 
3. Não se pode invocar, como faz a recorrente, no âmbito do processo laboral as normas que no Código Civil regulam o regime geral da compensação, tendo em consideração a especialidade das regras do Direito do Trabalho que definem tal regime com vista à concretização do princípio da protecção do trabalhador contra possíveis danos pecuniários resultantes da redução da quantia fixada como remuneração do trabalho prestado.”


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