14 agosto, 2021

A contratação colectiva em Moçambique

73. A contratação colectiva em Moçambique 
No nosso país, é incerta a época do surgimento das convenções colectivas de trabalho, existindo duas fases marcantes no âmbito das relações laborais de algum modo relacionadas com aquelas: 

73.1. Período colonial 
Nos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX, surge em Moçambique um movimento operário – ideologicamente muito marcado pelo sindicalismo revolucionário ligado à corrente anarco-sindicalista então dominante em Portugal e no Mundo – que se organiza em associações de classe (205), tem uma imprensa operária própria, realiza greves, e comemora o 1.º de Maio. (206) 
Trata-se, no entanto, de um movimento circunscrito aos trabalhadores europeus em Moçambique, sem a participação dos trabalhadores africanos (207), e cujas lutas não colocavam em causa o sistema colonial. 
A instauração da ditadura, no seguimento do pronunciamento militar de 1926, introduz no domínio sócio-laboral o sistema corporativo – assente na negação da luta de classes e numa pretensa solidariedade entre trabalhadores e patrões, que proíbe o direito de greve, suprime as anteriores associações de classe substituídas pelos “sindicatos únicos nacionais” controlados pelo Estado – que condiciona largamente a liberdade e acção sindicais, e põe fim a este movimento operário em Moçambique. 
Quanto à contratação colectiva, em termos de direito positivo, a Portaria n.º 17.782, de 28 de Junho de 1960, estende a Moçambique o Decreto n.º 36.173 de 6 de Março de 1947 que estabelecia os princípios que deviam reger as convenções colectivas de trabalho, e posteriormente o Código do Trabalho Rural (CTR) aprovado pelo Decreto n.º 44.309, de 27 de Abril de 1962 – aplicável em Moçambique não só aos «trabalhadores rurais», mas também aos «assalariados indiferenciados» (artigo 3.º, n.º 2) – também se referia às convenções colectivas a propósito da fixação dos salários (208). A despeito destes diplomas legais vigorarem em Moçambique, o facto de os sindicatos e de a negociação colectiva terem sido reconhecidos como meio de efectuar a solidariedade entre o capital e o trabalho (corporativismo), sujeitas a um apertado controlo administrativo do Estado (em Moçambique, por ex., a constituição dos sindicatos e a celebração de contratos colectivos estavam sujeitos a homologação administrativa do Secretário Provincial), bloqueiam fortemente a contratação colectiva, pelo que são raras as experiências de negociação e contratação colectivas. (209) 
Em conclusão, aos trabalhadores moçambicanos, no período colonial, nunca lhes foram reconhecidos os direitos laborais fundamentais (liberdade sindical, direito de greve, negociação colectiva).

73.2. Período pós-independência 
A independência veio afirmar a autonomia e liberdades sindicais que só são, no entanto, verdadeiramente reconhecidas pelas revisões constitucionais de 1990 (art.ºs 90 e 91 da CRM/1990) e 2004 (art.ºs 52, 86 e 87 da CRM/2004), ao consagrar e perfilhar os direitos à organização sindical e à actividade sindical nos locais de trabalho e o direito à greve. 
Foi, sem dúvida, através das lutas reivindicativas nos sectores, nas empresas, nos locais de trabalho que os trabalhadores conseguiram conquistar direitos, muitas vezes em condições muito duras, designadamente, o direito à negociação e contratação colectivas. No entanto, ao contrário do verificado na maioria dos países, em que a negociação colectiva se impôs por força de uma prática consuetudinária praeter legem e em que a celebração de convenções colectivas de trabalho ocorreu antes da sua recepção formal pela ordem jurídica, em Moçambique verificou-se o inverso, tendo a negociação colectiva merecido consagração legal (desde logo na primeira Lei do Trabalho, Lei n.º 8/85, de 14-12) muito antes da celebração dos primeiros acordos colectivos de trabalho que apenas acontecem após a publicação da Lei do Trabalho em vigor (Lei n.º 23/2007, de 1-08), sendo nesta matéria possível distinguir três momentos distintos:

73.2.1. O período de economia planificada (1975-1989) 
A primeira Constituição de Moçambique que entrou em vigor em simultâneo com a proclamação da independência nacional em 25 de Junho de 1975, veio consagrar na área laboral, princípios gerais como o da dignificação do trabalho e da justa repartição dos rendimentos do trabalho (artigo 51), o direito à livre escolha da profissão e proibição do trabalho compulsivo (artigo 88), o direito a justa remuneração, ao descanso e a férias, a protecção, segurança e higiene no trabalho bem como o da proibição de despedimento sem motivo estabelecido na lei (artigo 89), a liberdade de organização em associações profissionais ou em sindicatos (artigo 90), o direito à greve e a proibição do lock-out (artigo 91). 
A Constituição de 1975 instituiu um regime socialista de economia planificada, pelo que a despeito da legislação laboral introduzida pelas Lei n.º 8/85, de 14-12 (primeira Lei do Trabalho), Lei n.º 33/90, de 24-12 (exercício do direito de negociação colectiva), Lei n.º 23/91, de 31-12 (liberdade sindical, direito de associação e auto-regulação), e Lei n.º 27/91, de 31-12 (associações de empregadores), o sistema económico centralmente planificado com um forte conteúdo socializante e uma feição excessivamente garantística na defesa dos interesses dos trabalhadores alicerçado num sindicalismo unitário (a OTM – Organização dos Trabalhadores de Moçambique) ligada ao partido único no poder, impediu o desenvolvimento da negociação e contratação colectivas.

73.2.2. O período de economia de mercado (de 1998-2004) 
A Constituição de 1990 trouxe alterações muito profundas em praticamente todos os campos da vida do país, sendo de realçar, na área económica, o abandono por parte do Estado da sua anterior função basicamente intervencionista e gestora, para dar lugar a uma função mais reguladora, com a introdução de mecanismos da economia de mercado e do pluralismo dos sectores de propriedade. 
A segunda Lei do Trabalho, aprovada pela Lei n.º 8/98, de 20 de Junho, na linha da revisão constitucional de 1990, veio consagrar um regime laboral mais flexível, que procurou estabelecer um equilíbrio entre os interesses dos trabalhadores e dos empregadores nas organizações do trabalho, em ordem ao estabelecimento de conciliação dos interesses económicos e sociais e de elevação dos níveis de produtividade e competitividade da economia nacional, com a instauração de uma efectiva liberdade sindical (datam desta época a constituição dos primeiros sindicatos livres e independentes da OTM) e o reforço do papel dos sindicatos. 
Ainda assim, a assumpção e solidificação destes novos princípios por parte dos empregadores e sindicatos, fez com que o desenvolvimento da contratação colectiva acabasse por ser deferida para um momento posterior e pós-Constituição de 2004.

73.2.3. O período da Constituição de 2004 em diante 
A Constituição de 2004 (CRM 2004), não representando uma ruptura com o regime constitucional de 1990, reforçou e consolidou o regime de Estado democrático de Direito provindo de 1990, cujo aspecto mais relevante, no que ao Direito do Trabalho diz respeito, tinha sido a constitucionalização dos seus princípios fundamentais, como o da segurança no emprego, a proibição do despedimento sem justa causa e do lock-out, o direito à actividade sindical, à greve, à segurança social, à justa remuneração, ao descanso e a férias, que se mantêm consagrados na CRM de 2004 entre os direitos, deveres e liberdades fundamentais com desenvolvimento no capítulo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais.
Na sequência da revisão constitucional de 2004, foi publicada em 2007, a terceira Lei do Trabalho (Lei n.º 23/2007, de 1 de Agosto), cujas alterações mais significativas se podem sintetizar nos termos seguintes: 
  • protecção da dignidade e estabilidade do trabalhador no emprego; 
  • regime do contrato de trabalho a prazo adaptado às necessidades temporárias de contratação das empresas; 
  • adopção dos regimes do trabalho temporário e de outros instrumentos de flexiblização de contratação (cedência ocasional, contratação de jovens, etc.); 
  • promoção da flexibilidade laboral em termos de modificabilidade do contrato de trabalho, adaptabilidade de horários, e de cessação do contrato; 
  •  reforço da autonomia contratual colectiva incentivando a celebração de acordos colectivos de trabalho e da utilização dos meios de resolução alternativa (conciliação, mediação e arbitragem) de conflitos colectivos de trabalho. Datam deste último período, a negociação e celebração dos primeiros acordos colectivos de trabalho em Moçambique. (210)
Notas: 
(205) As associações de classe e os sindicatos profissionais foram constituídas ao abrigo dos Decreto de 9 de Maio de 1891 e Decreto 10.415, de 27 de Dezembro de 1924, substituídos pelos “sindicatos únicos nacionais” de raiz corporativa (Decreto-Lei n.º 23.050, de 23 de Setembro de 1933), na sequência da aprovação do Estatuto do Trabalho Nacional.

(206) José Capela “O Movimento Operário em Lourenço Marques - 1898-1927”, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto. Importa salientar que a implantação da República em 1910, introduz um regime liberal em Portugal (extensivo às colónias) que reconhece o direito à greve (Decreto de 6.12.1910) e as associações de classe (cujo estatuto havia sido anteriormente aprovado pelo Decreto de 9.5.1891). 

 (207) No dizer de José Capela (ob. cit., pp. 12 e 125-126) “a integração de todos os tipógrafos da Imprensa Nacional, incluindo os africanos, na associação de classe respectiva, e a criação União dos Trabalhadores Africanos em 1911 são as únicas tentativas de congregar os trabalhadores ditos africanos nas associações sindicais de classe, embora não tenham passado de uma boa intenção dos sindicalistas europeizados”. 

(208) Artigo 78.º «Na falta de convenções colectivas que fixem os salários mínimos dos trabalhadores e para os casos que por elas não sejam abrangidos, deverão os governos das províncias ultramarinas, sob proposta do Instituto do Trabalho e ouvidas as associações patronais e dos trabalhadores, em diploma legislativo, publicar as tabelas dos salários mínimos dos trabalhadores rurais, segundo a sua qualificação». Artigo 81.º «As quantias abonadas ou adiantadas pelas empresas aos trabalhadores, salvo os casos expressamente previstos na lei ou nas convenções colectivas, não poderão ser descontadas nos salários». 

(209) Encontramos publicados no Boletim Oficial, o Acordo Colectivo de Trabalho de 25.03.1968, entre Bancos existentes na Província e o Sindicato Nacional dos Empregados Bancários (BO, n.º 13/1969, I Série, 2.º Suplemento); Acordo Colectivo de Trabalho de 16.05.1968, celebrado entre a Trans-Zambézia Railway Company Limited e o Sindicato Nacional dos Ferroviários de Manica e Sofala e Pessoal do Porto da Beira (BO, n.º 31, I Série, 2.º Suplemento, de 5/08/1968); Acordo Colectivo de Trabalho entre Banco Nacional Ultramarino, Barclays Bank DCO e e The Standard Bank of South Africa Limited, e o Sindicato Nacional dos Empregados Bancários da Província de Moçambique, representando todos os empregados bancários da Província, aprovado por despacho do Secretário-Geral de 3-11-1958 (BO, Suplemento n.º 44/1958); Acordo Colectivo de Trabalho entre a Trans-Zambézia Railway Company Limited e o Sindicato Nacional dos Ferroviários de Manica e Sofala e Pessoal do Porto da Beira, homologado por despacho 10-04-1961 do Secretário-Geral (BO, n.º 53/1960). 

(210) A LT não contém disposição que faça menção à publicação dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho no Boletim da República. 
O Decreto n.º 33/90, de 24 de Dezembro de 1990, que regulava o exercício do direito de negociação colectiva - entretanto revogado pela anterior Lei do Trabalho (Lei n.º 8/98, de 20 de Julho de 1998) - obrigava à publicação no Boletim da República dos acordos de adesão e despachos de extensão dos acordos colectivos de trabalho e das decisões arbitrais (artigos 28/3 e 29/2), mas nem mesmo a obrigatoriedade da publicação de tais instrumentos consta da actual lei. 
A publicação em Boletim da República ou em outra publicação oficial (por ex., o Ministério do Trabalho acaba de lançar o “Boletim Informativo do Trabalho”, que podia ser a sede própria de publicação dos IRCT´s) dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho é, do nosso ponto de vista, indispensável para determinar com as necessárias certeza e segurança jurídicas, o início, o período da vigência e o prazo de denúncia dos IRCT’s.

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