26 setembro, 2020

Situação actual do Direito do Trabalho

6. Situação actual do Direito do Trabalho 
As crises que há mais de décadas afectam as economias globais projectam-se sobre as condições de trabalho, com consequências nos mercados de trabalho, produzindo inquietudes e perplexidades no Direito do Trabalho. 
O respeito pelo valor e função social trabalho, as liberdades colectivas, a solidariedade, a democracia social e a dignidade da pessoa humana constituem princípios sedimentados, sobre os quais o direito do trabalho construiu a sua autonomia dogmática na densificação de valores essenciais de justiça social que são os princípios fundadores da Declaração de Filadélfia de 1944 (Declaração Relativa aos Fins e Objectivos da OIT – Organização Internacional do Trabalho), nela afirmada por forma explicitamente dogmática. 
O Direito do Trabalho nasceu, cresceu e foi conquistando autonomia científica como direito adequado a enquadrar e regular relações estruturalmente assimétricas e carecidas de compensação e protecção da debilidade do trabalhador. 
Contudo, a globalização dos mercados, a desindustrialização e terceirização das economias e os progressos fulgurantes das TIC´s (tecnologias de informação e comunicação) que originaram o advento da 3.ª Revolução Industrial (ou Sociedade Informacional) em que ao mesmo tempo, a prosperidade e o aumento de riqueza, possibilitados pelo desenvolvimento tecnológico, são conseguidos à custa da redução de postos de trabalho e do emprego nos espaços económicos nacionais. Como resultado, instalou-se um denso paradoxo nas políticas económicas e sociais: manter a competitividade num mundo globalizado, sem perder a coesão social, quando o trabalho ou o emprego, se tornaram como bens cada vez mais escassos. 
Neste ambiente político e sócio-económico, a crise foi sendo o pretexto para a emergência de um discurso que exige a recomposição de categorias jurídicas (designadamente, com a acentuação da regressão dos direitos dos trabalhadores) em que emerge o enfraquecimento e a erosão dogmática e a consequente modificação do Direito do Trabalho. 
Como consequência, a orientação tradicional do Direito do Trabalho sofre uma inflexão usualmente designada como “crise do direito do trabalho” (16) que perdura desde os anos 70 do séc, passado até hoje. 
Na origem desta crise está a evolução de determinados factores que estão no cerne do desvio da orientação protectora do Direito do Trabalho e que são essencialmente os seguintes: 
  • o surgir ao lado do “trabalhador típico” (“trabalhador subordinado”) de novas categorias de trabalhadores (trabalhadores a termo, temporários, trabalhadores especializados, quadros técnicos e dirigentes), os denominados “trabalhadores atípicos” e que não correspondem à imagem do trabalhador subordinado clássico; 
  • o despontar ao lado do modelo típico de empresa (grande unidade industrial ou empresa dominante do sector secundário da economia) de uma multiplicidade e predominância de modelos empresariais (empresas do sector terciário, tecnológicas, globalizadas) que adoptam formas de organização mais flexíveis e menos verticalizadas e em que a denominada relação de trabalho típica deixa de ser dominante para passar a ser apenas mais uma entre os diversos estatutos dos trabalhadores; 
  • a crença na insustentabilidade económica do sistema laboral protectivo – derivada dos sucessivos ciclos de crise e recessão económicas – que levou as empresas e os Estados a reduzirem os custos associados ao trabalho. 
As tendências de evolução do Direito do Trabalho por força dos factores referidos, levou à inflexão da universalização da tutela laboral no sentido do afastamento da rigidez e garantismo dos regimes laborais, ou seja, da “flexibilização” e desregulamentação” dos institutos jurídico-laborais: 
  •  por um lado, na “flexibilização” tanto na sua vertente da diversificação da tipologia dos vínculos laborais (“flexibilização externa”) como na diminuição da sua rigidez (“flexibilização interna”);
  • por outro, na “desregulamentação” essencialmente focada em três pontos: 
(i) a supressão das normas legais imperativas em diversas matérias cuja regulação é remetida para o âmbito das contratos de trabalho, reforçando assim a individualização das relações de trabalho;(ii) a possibilidade de afastamento das normas legais pelas convenções colectivas, mesmo que em sentido menos favorável aos trabalhadores, colocando em causa o princípio das normas legais como “imperativos mínimos”;
(iii) a alteração das regras especiais de interpretação e aplicação vigentes no direito laboral (“princípio do favor laboratoris”) no sentido do seu progressivo afastamento.

São estas tendências da “flexibilização” e “desregulamentação” – a despeito da existência actual de uma “nova questão social” que, embora com diferenças, se assemelha à do séc. XIX e, quando se justificava, por isso mesmo, uma intervenção refundadora do Direito do Trabalho no sentido da aproximação aos princípios que estiveram na origem da sua criação – que se têm vindo a acentuar nos mais diversos regimes jurídico-laborais ao nível global. 
Poderemos dizer que parece existir uma tendência para a reconfiguração do Direito do Trabalho num caminho rápido para o retorno ao direito civil, com a fragilização do carácter protector do direito laboral em favor da dimensão especificamente contratual e privatística, ou seja, em que a suposta “modernização do Direito do Trabalho” surge associada a uma deriva do Direito do Trabalho, tradicionalmente centrado na protecção do trabalhador, para um dito “direito do mercado de trabalho”, concebido, sobretudo, como um instrumento ao serviço da promoção do emprego e do investimento e variável da política económica, e dominado por meras considerações de eficiência económica (produtividade da mão-de-obra, competitividade das empresas, etc.). 
Ainda assim, entendemos que a pretexto da “crise do mundo do trabalho” marcado por transformações muito profundas que o atravessam em múltiplas dimensões (impacto das políticas de austeridade, crescente precarização das relações laborais, novas formas de emprego e desemprego, impactos resultantes da introdução das novas tecnologias digitais, entre as quais a robótica e a inteligência artificial) – que originou a dissolução de categorias, a cedência das construções dogmáticas aos imperativos da «razão económica», e a fragilização dos conjuntos normativos teoricamente organizados em disciplina autónoma, afectando a natureza e a função do Direito do Trabalho – a nova abordagem do Direito do Trabalho, no que se nos apresenta como «desafio do séc. XXI», não pode ceder à fragilização do seu estatuto protector em favor da dimensão especificamente contratual e privatística, enfraquecendo a garantia dos vínculos e a protecção dos trabalhadores, nomeadamente, das novas categorias de trabalhadores temporários, precários, e demais formas de emprego heterogéneas, resultantes da globalização ou dos novos desenvolvimentos tecnológicos. 

Notas: 
(16) Sobre a crise actual do Direito do Trabalho, entre outros, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho - Parte I (…), pp. 456-462, Bernardo Xavier, Curso (…), pp. 54-58, e Alain Supiot “Critique du droit du travail” PUF - Ed. Quadrige, 2002.

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